segunda-feira, 14 de março de 2011

crítica do espetáculo

PROTOCORPOS
ACUPE Grupo de Dança
Por Biagio Pecorelli

Ainda na porta, uma das alunas-intérpretes me entregou a ficha técnica do espetáculo e alertou: “você pode transitar pelo espaço à vontade”. Tirei o all star, para não sujar os linóleos que se espelhavam por diversos ambientes da casa, e segui o fluxo das quase cem pessoas que foram naquela noite a Estação Cultural Senador José Ermírio de Moraes, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes, para descobrir PROTOCORPOS, espetáculo que finaliza o curso de intérprete-pesquisador em dança promovido pelo ACUPE Grupo de Dança, sob a coordenação pedagógica de Paulo Henrique Ferreira.

Já de início, fomos chamados a nos acomodar em acentos dispostos de maneira aparentemente aleatória sobre um tapete vermelho, lembrando — não por acaso — uma instalação. Dentro de três tecidos, três corpos respiravam ao som de um organismo vivo. Mal começou e já estávamos colocados dentro da obra, como que no seu ventre. Nosso lugar de público não era o lugar de voyer que marca grande parte da tradição espetacular ocidental; lugar o qual nutrimos ao ver televisão, navegar na internet ou ir ao cinema: um dispositivo frontal, construído para que o espectador tenha a sensação de ver tudo e o artista total controle sobre seus jogos de ilusão. Não. De qualquer lado, a qualquer instante, algo poderia atingir em cheio a nossa percepção. A relação público-obra em PROTOCORPOS anunciava-se muito mais perto do universo atual das artes visuais, com corpos interativos em fluxo constante pelo espaço, do que propriamente das artes cênicas e seus corpos tradicionalmente prostrados.

E assim, em trânsito, cada performance1 — solos, duplas e trios — foi se dando, todas distribuídas alternadamente entre as duas salas e a varanda da casa. A relação entre uma “cena” e outra ficava por nossa conta, bem como o posicionamento dos nossos corpos no espaço para olhar. Não faltavam indagações como “para onde?”, “e agora?”, enquanto algumas alunas nos “tangiam” para os eventos seguintes. Entendo.

Quando Allan Kaprow apresentou, em 1959, a performance 18 happenings in 6 parts, tudo ainda era por demais sagrado no campo da arte. O lugar do artista, neste particular do artista plástico, ainda era o de um “gênio” inventivo, guardião do processo mágico que o levava a uma obra exclusiva, que, apenas quando pronta, podia ser levada ao salão de um nobre ou, mais tarde, à galeria onde gozava seguramente do olhar passivo e reverente de todos. 18 happenings in 6 parts foi apenas um de inúmeros acontecimentos, guardados ou não nos anais da história da arte, responsáveis por uma guinada sem precedentes na natureza dos objetos artísticos e, mais que tudo, no olhar que devemos empreender sobre eles. Em suma, este “olhar” é, desde meados do século XX, cada vez menos retiniano2 e mais fundado na experiência; experiência esta que, em PROTOCORPOS, se dá menos através de algo que vejo do que de um lugar onde entro, assim como no happening de Kaprow, há mais de 50 anos.

Operando diálogos entre a dança e o cotidiano, o espetáculo-exposição se ajunta bem ao que tem se chamado simplesmente de “cena contemporânea”, ou teatro performativo, dança performativa e por aí vai. Este “campo expandido”, onde diversas linguagens (poesia, música, teatro, artes visuais, dança) se mesclam às novas mídias para promover novos “espantos” no olhar, é herdeiro de sucessivas rupturas no universo da arte, dentre as quais a chamada “performance” aparece como um tipo de massa amorfa para onde cada uma dessas linguagens se expandiram e continuam a se expandir ainda hoje, cada qual no seu tempo, cada qual sob a égide de seus “grandes nomes”. Nesse (não-)lugar chamado “performance”, atores, artistas plásticos, diretores, dramaturgos, músicos, pesquisadores, bailarinos do mundo todo depositaram nas últimas décadas, de forma mais o menos consciente, seus fluxos de criação inomináveis; suas ações incategorizáveis; a insubmissão de seus corpos aos cânones da arte e da cultura, suas “subjetividades dissidentes”3. Assim, o objeto outrora visual tornou-se táctil e alcançou o corpo do artista e do público; o espetáculo outrora linear e protegido atrás da “quarta parede”, fragmentou-se e tornou os espectadores também actantes — quando não engajados fisicamente, exigidos demais emocionalmente e intelectualmente. Seja como for, em matéria de arte, a “contemplação” parece cada vez mais démodé, sendo o público convidado todo o tempo a pensar-agir e a dar respostas àquilo com que se depara no palco, na galeria, na rua, em casa, nos lugares mais inusitados onde essa arte relacional4 se intromete.

Instinto, passionalidade, nascimento, morte, felicidade, femininilidade, masculinidade, todos são temas que aqui e ali perpassam as criações dos 19 alunos-intérpretes que compõem PROTOCORPOS, sob a direção de Paulo Henrique. No entanto, acredito, é do próprio lugar de onde eu vejo, das minhas verdades perceptivas e da comodidade do meu corpo de público no espaço que o espetáculo diz. O trânsito dos espectadores, se esbarrando, disputando os melhores ângulos, perdidos, forma como que uma dança a parte, um espetáculo que completa PROTOCORPOS. Fica difícil comer pipoca e tomar coca-cola. Cícero, um dos alunos-intérpretes, em seu solo sobre a fera5, ousou tocar o rosto da senhorita na platéia, furando oportunamente a barreira. Barreira desde o princípio ameaçada e levada ao chão no ato final, em que somos convidados a carimbar, literalmente, os corpos dos bailarinos, deixando neles a marca da nossa passagem.

Já é tempo de nós, espectadores, abandonarmos a timidez do espectar? Espectadores ou espectros da ação alheia? Mais de meio século se passou desde que Kaprow realizou 18 happenings in 6 parts e, de lá pra cá, são incontáveis o eventos artísticos que propuseram ao público mais que um estado contemplativo, uma inter-ação. Hoje, o que esperamos de uma arte ao vivo? Uma arte em que alguém aparece suando à nossa frente, de modo tão real que poderíamos, num acesso de loucura, destruí-lo realmente (e não apenas fazer uma sombra em sua imagem na tela)?

O chamado da performance para a vida, para o encontro irrepetível entre o artista e o público parece longe de se esgotar, e quanto mais se consolida a indústria do entretenimento, que tem por hábito reduzir arte à cultura, mais parece valer a vocação da performance em jogar com os limites, esteja ela figurando nas artes visuais, no teatro, ou na dança; sendo ela mesma a pergunta “o que é isso tudo?”. O fato é que ainda esperamos, de modo geral, sair com o namorado ou a namorada para um passeio de fim de semana, sentar em cadeiras bem acolchoadas e assistir inertes a uma peça de teatro ou um espetáculo de dança que nos faça esquecer da gente, e não a uma coisa que nos pergunte sem dar tréguas: “quem é você?”, “como me vê?”. Ao mesmo tempo, brilham de curiosidade os olhos do homem diante da performance e seus enigmas. Aquelas duas perguntas foram dançadas com entusiasmo pelos 19 bailarinos de PROTOCORPOS, superando as visíveis limitações técnicas, os entraves espaciais que eles mesmos criaram, e os figurinos da rua das Calçadas.    

Amarrando o cadarço do all star, ao final, acho que fui dando conta de que tudo junto foi um só acontecimento sem volta, e não um produto, tampouco uma lição que eu pudesse levar para casa. Hoje, domingo, tem de novo. Não, não tem de novo. Será outro. Outros PROTOCORPOS, apenas parecidos.


  1. “Performance” sempre foi um termo de dificílima acepção, hoje rodeado de profusões que alcançam das artes visuais à antropologia; da dança à publicidade. Entendo mais ou menos por “performance” aqui, para fins operativos, um campo híbrido de experiências artísticas originadas na vida cotidiana, que tem no corpo o seu epicentro.
  2. Marcel Duchamp chamou de “arte retiniana” uma arte interessada apenas em agradar a vista.
  3. O termo aqui foi deslocado, talvez arbitrariamente, de Suely Rolnik em “Micropolítica: cartografias do desejo”, quando fala em processos de singularização que se opõem à produção de subjetividade captalística.
  4. Estou aqui com Nicolas Bourriaud, que em seu “Estética Relacional” define essa arte como “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (2009, p. 19) [ grifo do autor ]
  5. Diz Cícero Evaldo: “às vezes me sinto gente, às vezes me sinto fera!” (fonte: folder do espetáculo)

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